quinta-feira, 14 de junho de 2007

Their Satanic Magic Request

Solto uma gargalhada tensa, olho para o alto do quarto e vejo a luz que emana do
espelho instalado no teto. O abajur que reflete o ambiente inteiro de espelhos é
de cristal, no formato de uma pirâmide. Há duas cadeiras de madeira e um sofá
velho se equilibrando sob uma manta xadrez, a estante aguarda os livros que
virão, por enquanto aguarda, ansiosa.
Na mesa há dois lápis e uma folha, um desenho abstrato está grudado na
superfície com uma fita, para não se movimentar enquanto se desenha, várias
folhas espalhadas pelo chão, brancas, breve espaço entre idéia e obra. No ar, um
intenso odor de incenso de mirra.
Na vitrola ouve-se o disco dos Stones, “In another land”, um som etéreo desvia
nuances de sonhos entre os vãos que sobram sem serem invadidos por papéis.
Eu rio ainda, nada nesta sala pode me atingir, rodopio feito um louco sem
esbarrar em nada, com os olhos fechados e um microponto debaixo da língua, meu
suor e minhas lágrimas que antes rolavam pela minha face, agora borram a máscara que
tenho no rosto tentando me esconder da multidão que enfrento, ora em sonhos, ora
em vida.
O fulgor das investidas de loucura que me invade faz do medo meu aliado. Agora
rio, descontroladamente.
A alegria que eu pensava encontrar dessa maneira se desfazia em segundos.Os
pássaros desciam lentamente e me tocavam com seus bicos sedentos, eu os
espantava. A música fluía solta, dançava com os desenhos e com todos os papéis
que sufocavam o chão da sala. O odor exalava ainda mais temor e eu me sentia fraco
e humano.
Abri a porta e descompassadamente me arrastei até a rua, peguei meu discman e
meu cd dos Stones,”On with the show’ tocava agora,andava desesperadamente como
se a rua é que deslizasse sob meus pés. Afoito, olhava para o céu, era uma
daquelas noites estranhas, um vento gélido, uma garoa fininha, a noite mais
escura do que de costume, talvez fosse a ausência da Lua. Era uma rua estreita,
de estreitos raios de luz listrando o solo sujo, a imundície dos mendigos e suas
barbas cheirando a álcool, levava nojo e também uma vontade de me juntar a eles.
Parecia que suas vidas eram livres, e pra ser livre era preciso não se prender a
nada, não possuir nada, pobreza, podridão, liberdade.Puxei um cigarro da
cartela, levei até a boca e suguei forte, traguei como um suspiro e soltei a
fumaça numa forte expiração, como se tivesse golpeando um oponente, como nos
filmes de Bruce Lee . Retirei de meu casaco um cantil de uísque e tomei de um
gole, o efeito do ácido bateu subitamente e o frescor da brisa me deu vontade de
gritar, de sorrir, pular e tudo que fiz foi me deitar e vomitar sobre a lata de
lixo onde minutos antes um mendigo encontrava sua refeição. A chuva persistia e
a cada nota um suspiro eloqüente se desenhava na garganta, mais um gole de
uísque, as ruas agora são largas, tão largas quanto o caminho dos fracassados.
Eu tinha algum dinheiro, entrei em um bar, me sentei ao fundo e pedi um copo de
vodka com gelo, olhei ao redor e as pessoas pareciam andar e falar no compasso
da música, “Citadel”, pareciam agir sem vontade própria, zumbis,chorando,
gritando, querendo fugir mas sem forças pra isso.
Um segundo, um gole de vodka, sai do bar,uma caminhada e eu já parecia um
estranho, um alienígena, como sempre fui e como sempre me senti. “In another
land”.As estrelas pareciam se soltar do céu e dançar, pulavam, tremiam,
iluminavam com suas luzes pálidas,as sombras das árvores eram sonhos desfeitos,
sonhos mentirosos, tomei um novo gole, acendi outro cigarro. Caminhando ainda,
trôpego mas consciente, as imagens pareciam brincar comigo, postes altivos e
ameaçadores, sombras temíveis que se erguiam e me olhavam , a rua, a
calçada, as poucas árvores espalhadas no caminho aparentemente infinito eram
como fantasmas errantes, pousados tristemente sob uma realidade confusa,cada
passo era ao mesmo tempo uma despedida e uma saudação, camuflados, sutilmente em
meio as notas loucas .”She’s a rainbow.
Caminhei de volta pra casa, entrei e fechei a porta, fui andando lentamente de
volta ao meu quarto, a vitrola já havia parado, coloquei novamente o disco
“Their Satanic Magic Request”, mais um incenso de mirra, mais um gole de uísque,
ainda sentia a vibrante sensação do ácido lisérgico correndo entre as idéias
enevoadas do meu cérebro.
Deixei a porta do quarto aberto, pois queria fugir quando quisesse, sem precisar
abrir portas,(embora não fugisse nunca).
Sentei na cadeira de madeira, ria como se fosse morrer se parasse, meus olhos nem
sequer piscavam, o riso aumentava de ritmo e de volume, vi um homem em minha
frente, mas notei que não era bem um homem, era uma divindade, e não notava que era
isso que me fazia rir, eu o olhei pela segunda vez, já o tinha visto antes,da
primeira vez quase morri.
Esse Deus que me encarava era um vulto etéreo, dizia frases incompreensíveis e
isoo me apavorava, tentava compreender as palavras, os ruídos e os gritos que o
vulto exprimia, mas meu estado apenas permitia que eu risse. Peguei a pirâmide
de cristal e quebrei violentamente no chão, ainda rindo, quebrei os móveis, tudo
que estava no quarto e ri ainda mais forte, arfando e tremendo.Deitei-me no
chão, sobre os destroços e vi o teto do céu através do teto do quarto, vi
estrelas,Luas e noites, todas dançando e cantando, tocava “Gomper”, (o
finalzinho),o começo de “2000 Light years from home” me assustou, as estrelas
riam do tempo e das mentiras.As luzes fulminavam meus cabelos os fazendo brilhar
como vagalumes, isso fazia de mim um arco-íris vivo, pois meu cabelo reluzia
com as cores do arco-íris.
A cadeira era o único móvel que ficou intacto na sala, e isto porque milhões de
borboletas estavam lá sentadas, me olhando como se eu fosse um ser estranho e
esquisito. Olhei pela janela e vi que as flores se mutilavam no jardim, se
regavam e se colhiam, enquanto isso eu tentava tapar minha boca para parar as
risadas, mas nunca conseguiria parar.
Os livros aterrisavam na estante, eram negros e com muitas páginas, não haverá
leitores, mas eles se contentarão em ser livros negros e com muitas páginas e
informações. Um pássaro veio voando com uma coroa brilhante em suas garras. Eu
ria ainda, sabia que não ia parar e isso me fazia rir mais ainda, ergui minhas
mãos aos céus entoando preces insanas e revoltadas, traindo meu próprio
compromisso de me calar, calar minha alma. Fazia preces em pensamento, porque
minha boca apenas ria, meu corpo apenas se movimentava no ritmo do riso
desenfreado, meus músculos vibravam, como se fossem cavalgaduras de uma vontade
desconhecida.Novamente as borboletas voavam descontroladas, na chuva que agora
caía. Eu paro de rir, não sei como, mas paro.esqueço meu riso e me lembro das
lágrimas, esqueço de tudo que passei e vivi. As nuvens esperam os suores frios
do ar,querem também cair com a chuva fria, apenas para tocar em meu corpo e
sentir minha saudade. Todos os sonhos foram destruídos, resta apenas sua cadeira
e sua sala coberta de cacos de espelhos. Já não sei quem sou, se sou algo que se
pode tocar, ou uma daquelas milhares de imagens que jorram de cada minúsculo
pedaço de espelho que está caído no chão.Não me assusto mais com os
trovões,somente vejo minhas mãos, marcadas e meus olhos refletidos, meu
rosto que nem mais meu é, mas que já me acostumei como sendo.
Queria voltar para meus sonhos, mas é tarde demais, as ruas foram fechadas e
destruídas, as frestas já não são grandes o suficiente para suportarem gigantes
com saudade.
Muito tempo se passou desde então, já me senti muitas vezes assim, já voltei aos
meus sonhos, sempre volto, já morri muitas vezes e muitas vezes renasci.
O dia agora se apresenta diferente, o Sol brilha como se pudesse fazer mudar
toda a história que já viveu, a manhã é linda , mas tudo é igual e triste, os
signos teimarão em representar sinais que terei que decifrar, mesmo sendo
sufocado pelas risadas, que voltam sempre, cada vez mais atormentadoras.
Quero mesmo é saber se me encontrarei novamente ao alcance desses estranhos
seres e acontecimentos, cada vez que ouvir o mesmo disco dos Stones, saberei
somente quando puder ver através dos espelhos.
Meus pés me farão deitar de cabeça pra baixo na cama improvisada de certezas,
mas ainda assim me levantarei e direi que a cadeira é mais confortável.
Estou sorrindo, sentado de mãos erguidas, fazendo movimentos de bater palma,
expressão de felicidade, embora pareça triste.
Chega de risos e mentiras, já me cansei de minha máscara e de meus ruídos, já me
cansei, meu corpo está caindo, o abismo abre os braços pra me receber,sem meu
riso franético não sou nada, sem minha máscara e minha tristeza posso ser
enterrado, sem lágrimas , sem remorso, tudo segue seu rumo. “In another land’.

Luciano Pires

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