segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Gotta a light?



Gotta a light?
_ A fita, pega a fita.
A poeira dançava por entre o feixe de luz na escuridão do quarto.
_ Tá em cima do guarda-roupa, numa caixa de sapato.
_É essa? A fita VHS estava começando a pegar formiga, alguns pontos brancos de mofo.
_Se tiver alguma fita dentro pode trazer,vamos usar.
Beto colocou a fita na mesa de centro.
_Pronto. Esfregava as mãos e sorria. Esfregava as mãos e sorria. Sorria. Suspirava forte. Esfregava as mãos.
_O André disse se vem?
_ Tá vindo com o Clóvis, pararam no supermercado pra comprar vinho.
_E a Lúcia?
_Também vem, tá vindo com o Flávio.

A campainha berra.
_E aí, caras. Podem entrar e ficar à vontade, sentem no sofá, podem deixar as garrafas na cozinha.
Outro berro.
_Chegou o casal que faltava.
Luís era um ótimo recepcionista, o sorriso lateral e o aperto de mão forte.

A casa em que os irmãos moravam era grande, piscina na área externa e uma academia que nunca era usada. A sala de cinema era onde se reuniam sempre. A mesma turma.

_Vamos começar?
As velas foram acesas, uma a uma.
Um grande caldeirão foi posto sobre a mesa de centro.
Essa reunião de cinéfilos sempre acontecia no último sábado do mês, mas dessa vez Luís e Beto resolveram que iriam assistir o oitavo episódio da nova temporada de Twin Peaks todos juntos. No dia anterior Beto tinha visto alguma coisa na internet sobre fazer chá com fita VHS, que dava barato, que alucinava, que fazia ver coisas,mas que era perigoso. Inventou pra todo mundo que ia fazer chá de cogumelo, mentiu dizendo que quando foi pra São Tomé das Letras tinha aprendido.
De tarde, enquanto Luís estava no quarto lendo, ferveu um VHS antigo da coleção Folha de cinema, devia ser Lanternas Vermelhas ou Indochina. Fez o ponche, duas garrafas de vinho, duas maçãs, cravo, canela, mel, vodka.

_ Deixa eu tomar um gole dessa bagaça pra ver se ficou bom.
_Não, ficou bom, eu experimentei, deixa pra hora de assistir, não vamos queimar a largada.
Todo mundo já tinha visto o episódio, iriam rever juntos.
Luzes apagadas. Velas acesas. Cada um enche a sua caneca de ponche.

Beto olhava para cada um e ficava pensando:
_Porra, é um chá feito de fita VHS, é um tributo ao cinema, é a melhor forma de viajarmos e discutirmos depois, vai ser foda.

Estavam todos em uma roda no centro da sala. Levantaram a caneca.
  "Essa é a água e esse é o poço. Beba tudo e desça. O cavalo é o branco dos olhos e o escuro dentro deles"
Todos repetiam a frase em uníssono, como uma missa negra cinéfila Lynchiana.
Agora todos bebam.
Cada um virou o conteúdo da caneca ao mesmo tempo e se sentaram.
Beto deu o play no episódio baixado da internet.
A bomba atômica. Os vômitos. Os urros. Tudo se desintegrava. A parede suja de sangue. As cabeçadas na parede. A luz. Desliguem essa luz. O fogo. As velas derrubadas perto da cortina.
A casa em chamas. Os corpos pegando fogo.
Quando os bombeiros chegaram não dava mais tempo, todos estavam mortos, asfixiados, com os olhos abertos fixos na tela gigante.
O arquivo corrompido travou e a cena se repetia, os pixels se derramando e formando monstros ainda piores. Apenas se ouvia em um volume ensurdecedor:
_Gotta a light? Gotta a light?

Pessoas que aportaram por aqui: