As botas pesadas esmagavam o chão infestado de barro e neve, o grosso tecido da calça tornava o caminhar uma investida em longo prazo.
Uma baforada no cigarro.
A luva preta engessava o cabelo que teimava em esvoaçar.
O rangido da porta fez com que todos os olhos se voltassem para ele, o tempo segurava a respiração por alguns segundos, o ar pesava algumas toneladas.
— Preciso de algo para esquentar o peito — ele golpeia as palavras no ar.
O atendente do bar desliza um copo cheio do melhor uísque, dá pra ouvir um inseto atingindo a lâmpada em pequenos intervalos, a luz fraca se deita por todo o bar, estacionando nas abas dos chapéus, em um silêncio sepulcral.
— Forasteiro?— o atendente cospe para o lado sem dirigir o olhar.
— Soube que essa semana morreram duas crianças do povoado.
— Jornalista?— o velhote de avental cerrou os dentes e enfim encarou.
— Sou um amigo.
— Não meu, posso dizer.
Van Helsing tamborila o copo ainda cheio, passa pela jukebox, coloca uma ficha, caminha até uma mesa, puxa uma cadeira e descansa o corpo dolorido por alguns segundos.
Mr. Sandman, bring me a dream
Make him the cutest that I've ever seen
Give him two lips like roses and clover
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— Essa é a árvore — o garoto sussurra com o sorriso iluminado.
— Aquela que sonhou por tanto tempo? — a irmã também sorri.
— Sim, a famosa árvore do sonho.
Em cada galho da árvore havia um pássaro negro, imóvel, naquele momento o céu se encheu de vermelho, uma enorme ave escura como carvão e tão alta quanto um homem agarrou o menino pelos cabelos, a primeira bicada cegou um dos olhos, o líquido negro que escorria pelas órbitas tingiu as lágrimas de dor, mais uma bicada, as garras afiadas penetraram a pele macia e alva da criança, sua irmã mal conseguia gritar, quando tentou fugir o pássaro voou de encontro a ela e rachou seu crânio como se tentasse abrir uma castanha, todos os pássaros negros que estavam nas árvores se puseram a crocitar uma canção aterradora, os gritos abafados das crianças foram se tornando menos audíveis, até se encerrarem por completo.
No dia seguinte, em meio aos olhos vermelhos e frases desconexas, os pais faziam sinal da cruz e choravam aos gritos assim que receberam a notícia.
De longe, Van Helsing observava, calado, anotando algo em seu pequeno bloco de papel.
A noite encobriu tudo com ventos gelados, do quarto da pousada dava para avistar a floresta negra, o sono se assentava corpulento sobre os ombros do caçador, ele fechou a janela e cerrou os olhos.
No meio da noite sentiu o ar gelado invadindo o quarto, abriu os olhos e viu a janela escancarada e um vulto alçar voo pela escuridão, contornou com os dedos o punhal consagrado e o livro mágico, expirou com força e voltou a dormir.
— O mesmo uísque de sempre, senhor...
— Van Helsing.
Os olhares o seguiam feito animais ariscos.
— O filho de Seu Antônio foi encontrado devorado na floresta, parece que algum animal selvagem está atacando o povoado, pelos cortes das garras e feridas de bicos cortantes, parece uma grande ave de rapina.
Ao sair pela porta do bar ele ouviu um crocitar agudo, sentiu a sombra de uma enorme ave dançar sobre ele, engatilhou o olhar o mais rápido que pode e nada viu.
— O filho de Maria, o parvo, vivia dizendo de uma árvore mágica que só ele conhecia, os garotos zombavam dele e se riam e o empurravam.
As conversas cruzavam seus ouvidos, ele registrava tudo.
— Senhor, esse garoto...
— Josué, o filho bobo de Maria.
— Sim, onde ele dizia que ficava essa árvore mágica?
— Parece-me que o senhor é muito velho para acreditar nessas tolices.
— Diga pra ele, homem, mal não fará—disse a mulher carregando um bebê em seus braços.
— Depois da grande pedra, é difícil não perceber qual árvore é.
Ele voltou à pousada, pegou o livro de exorcismos e o punhal e caminhou até a árvore, mais uma vez a grande sombra e o crocitar agudo o acompanharam.
A árvore cresceu em frente a ele, como um abismo o encarando.
Em segundos o céu se avermelhou, os pássaros surgiram infestando os galhos, o barulho que faziam congelava o sangue nas veias.
De repente tudo se aquietou.
A sombra negra se avolumou no céu, o som ensurdecedor, dessa vez o grande pássaro negro se materializou e pousou com o peito estufado bem em frente ao caçador.
Com dois passos firmes, a ave reclina o corpo para frente e tenta acertar uma bicada, Van Helsing dá um passo para trás e aperta o punhal com os dedos rígidos.
O livro escorrega de suas mãos, a ave pula por sobre ele e o rasga com as garras cortantes, tudo fica em pedaços.
Van Helsing olha fundo nos olhos da criatura e diz:
— Nunca mais.
O pássaro se atordoa, parece sentir uma vertigem, como se sua alma sacudisse o corpo, como se seu criador soluçasse em seus ouvidos alguma palavra maldita.
— Nunca mais.
Os outros pássaros das árvores foram caindo como frutas podres, despencando no solo com um impacto que fazia tremer tudo ao redor.
As folhas foram murchando, os galhos retorcendo.
Enfim, o pássaro também caiu com as asas abertas, os olhos oscilando, soltando um gemido cru de desespero.
O punhal se enterrou em seu peito, o céu se tornou azul novamente, o sangue da ave foi sugado pela terra.
Alguns risos de crianças foram ouvidos, uma forte explosão de luz fez com que Van Helsing desmaiasse.
A manhã ensolarada mal tinha desfolhado, as botas pesadas faziam o caminho inverso, os olhos se fechavam pela incidência dos raios de Sol, o cigarro aceso, o cabelo esvoaçante, ele mexeu os lábios em silêncio:
— Nunca Mais.
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