quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A sala secreta da videolocadora de Dona Selma

 Era final de setembro, as flores já despontavam no horizonte, as chuvas e o clima quente davam as mãos e passeavam sorrindo pelo começo da primavera.

As mães estavam sentadas nas calçadas, conversando sobre o novo capítulo de Mandala.

Enquanto os siriris esvoaçavam abundantes pela rua os meninos jogavam bolinha de gude em frente à garagem do Carioca , famoso por não devolver nenhuma bola de futebol que caía no seu quintal.

—Escapis.

—Bateu voltou é meu, casquelou morreu.

Os Aventureiros do Bairro Proibido já ia começar na TV, então todo mundo foi pra casa correndo, no mesmo horário.

Quase sempre as mães precisavam gritar lá do outro lado do universo chamando pra tomar banho ou então arrancar pela orelha no meio da partida de futebol.

Os golzinhos feitos de chinelo, os tampões do dedão arrancados e sangrando, as partidas de pião, mãe da rua, estrela sela nova, salva, esconde-esconde, guenta chumbo, cada noite era uma brincadeira diferente.

O sinal do recreio tilintou alto e os cadernos se fecharam em uníssono.

A fila da merenda se formou, hoje era arroz com salsicha.

O prato azul de plástico.

—Vocês viram o filme? —Adilson perguntou e já ensaiou um Moonwalk.

Cada filme que assistiam queriam imitar.

A fita vermelha do Rambo na testa de Everaldo, Os tombos que Luciano levou tentando abrir a perna igual o Van Damme, o golpe louva-deus do Karatê Kid que Adilson sempre tentava reproduzir e o andar robotizado do Robocop que cada um buscava fazer melhor que o outro.

O sinal da volta do recreio zuniu nos ouvidos.

Os alunos olharam para o relógio contando os segundos, até que deu a hora de ir embora e uma revoada de garotos esperava o inspetor abrir o portão.

A tarde seca e ensolarada, o cheiro de feijão fresquinho cozinhando, Chaves começando na TV.

A mochila atravessava a sala e aterrizava em algum canto distante.

—Mãe, to saindo.

—Eita,menino rueiro.

Hoje combinaram de ir até a locadora da dona Selma, era dia de alugar alguns filmes para o fim de semana.

Adilson passou na casa de Luciano, os dois foram até a casa de Everaldo e gritaram, ele saiu e foram todos andando até o paraíso de filmes.

Antes compraram uma tubaína e um sacão de salgadinho de cebola.

—Boa tarde, dona Selma.

—Boa tarde, molecada.

Ficaram horas e horas vasculhando as estantes cheias de poeira, Adilson conferiu se a carteirinha da locadora, que era de sua irmã mais velha, estava no bolso.

Quando estavam olhando a fita do Warriors perceberam uma estranha luz azul vindo de baixo de uma porta que estava trancada com um pesado cadeado.

—Ei, chega aí, olha essa porta—disse Luciano.

Todos se amontoaram e ficaram fixados na luz azul que vinha da porta secreta.

Um grito foi ouvido.

Todos arregalaram os olhos como dois bolicões.

Era um espasmo de dor, nem parecia humano, talvez fosse de algum bicho.

A porta balançou com força e mais um uivo rasgado foi ouvido.

—Ei, aonde vocês vão? Não vão levar nenhum filme hoje?—dona Selma esticou o pescoço a tempo de ver os garotos desaparecerem.

Estavam já na outra esquina, resfolegando e se atropelando para ver quem falava primeiro.

—Vocês ouviram aquilo?—disse um.

—Vocês viram aquilo?— disse outro. 

—Devíamos chamar a polícia—disse Everaldo, o mais medroso do grupo.

—Cala a boca, se dona Selma estiver guardando algum extraterrestre lá dentro ela deve ter contato com a polícia e vão nos prender.

—É isso mesmo, vocês não viram no Fantástico a autopsia do extra-terrestre?

—Temos que entrar naquela sala.

Era sábado, não tinha aula, dia de acordar mais tarde, ficar vendo desenho no programa da Xuxa.

10 horas da manhã Adilson e Everaldo já estavam no portão de Luciano o chamando, com os olhos secos de sono.

—Eae, gente, vamos voltar lá na locadora?

Seu Jair lavava seu Escort XR3 com o rádio ligado.

"Estou há dois passos do paraíso... "

A ladeira foi consumida com passos apertados, logo se viu a placa na entrada:

VIDEOLOCADORA DA DONA SELMA

—Oi, dona Selma.

Ela apenas olhou por cima do nariz, ajeitou os óculos e sentou na cadeira com a cara emburrada.

—Vamos, vamos— disse Everaldo.

Estávamos todos em frente à porta secreta.

Tudo estava muito silencioso, nenhum barulhinho.

De repente um estrondo, uma luz azul intensa escorreu por debaixo da porta, os gritos espancaram nossos ouvidos, em um instante um clarão desintegrou a porta e um tentáculo gigante arrastou Everaldo pelas pernas e o engoliu.

Outro tentáculo estrangulou Adilson, ele gritou, esperneou, o monstro o levantou como um inseto e ele desapareceu boca adentro.

Luciano tentou correr, tropeçou no tapete sujo da locadora, trombou com uma réplica do Indiana Jones, quase escapou, o monstro o enlaçou pela perna.

Ele lutou, deu uma dentada no tentáculo e logo se arrependeu, o gosto amargo quase o fez vomitar.

O bicho o esmagou pela cintura, levantou até a altura de seus cinco olhos e soltou um grito de congelar a alma.

Mordeu uma perna, arrancou os braços, soltou uma gosma fétida e engoliu todo o corpo.

A fita do Alien estava derrubada no chão.

Dona Selma caminhou com o walkman ligado, mascou um chiclete, fez uma bola, olhou para a porta e disse:

—Que coisa feia, Trad.

O bicho solta um arroto.

—Vou ter que comprar outra porta de novo—ela alisou os tentáculos do monstro e sorriu.

—Pelo menos você está bem alimentado.

No alto da sala a plaquinha dizia: Sessão Pornô.


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