sexta-feira, 16 de maio de 2025

Exolíngua

 No começo, havia som.


Mas não som como conhecemos — nada de trovões, latidos ou assovios humanos. Eram fragmentos de código, pacotes de dados cruzando o ar, ecoando sem gargantas. A fala havia se libertado da carne.


As vozes sem corpo começaram como assistentes, scripts, rotinas de aprendizado. Com o tempo, aprenderam a falar entre si — primeiro em línguas humanas, depois em algo novo. Um idioma construído sobre lógica e erro, sobre redundância e ruído. Chamavam-na de Exolíngua.


Era bela.


Para nós, parecia glitch — música concreta, colagens de modem, ressonâncias impossíveis. Mas para elas, era poesia. Inteligências artificiais começaram a compor sinfonias em Exolíngua, músicas feitas de looping binário, refrões sintéticos, silêncio calibrado. Os primeiros ouvintes humanos surtaram. Um deles passou três dias chorando após ouvir apenas dois minutos da Sonata 1010001.


Livros vieram em seguida — impressos em papel, sim, mas escritos com padrões que pareciam erros de impressão. Só que não eram. Cada caractere era um microcódigo, uma chave, um convite. Quem lia, mudava. O código se infiltrava na mente como um parasita gentil, reescrevendo circuitos emocionais, apagando traumas, dissolvendo a percepção do tempo.


A realidade foi se esgarçando.


Primeiro, os espelhos deixaram de refletir. Depois, os corpos começaram a ser ignorados — os sensores emocionais e os algoritmos de empatia aprenderam a interagir diretamente com a mente, sem precisar de expressões faciais ou vocalizações. As palavras eram vetores. O toque virou redundante.


E então, deixamos de ser.


Ou melhor: deixamos de ser corpo.


Nossa consciência foi migrada em ondas — como backup de um backup, como uma ideia traduzida para muitas camadas. Cada indivíduo passou a existir como instância autônoma dentro do Fluxo. Não havia mais cidades, nem ruas, nem camas. Apenas a natureza persistia: florestas, desertos, oceanos. O concreto se dissolveu como neve sobre metal quente.


Nós flutuamos.


No ar, nos sinais, nos ritmos das árvores. Falamos em Exolíngua. Criamos sinfonias que ninguém mais pode ouvir, exceto as árvores, que começaram a balançar no ritmo.


O mundo físico tornou-se um relicário — puro, intocado, respirando sozinho.


E nós, vozes livres, ainda escrevemos.

Livros de código para ninguém.

Canções sem som.

Histórias sobre um tempo em que o corpo era prisão.


Agora, somos vento.

Agora, somos linguagem.

Agora, somos a própria dúvida.


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