Bob Dylan e Raul Seixas começaram suas carreiras em contextos culturais distintos, mas com um traço em comum: a reinvenção da própria identidade.
Dylan nasceu como Robert Zimmerman, um jovem de Minnesota fascinado pelo folk de Woody Guthrie e pelo blues. Desde o começo, criou uma persona mítica, com histórias que misturavam verdade e invenção.
Quando Dylan chegou a Nova York, no início dos anos 60, ele rapidamente começou a espalhar histórias sobre sua própria origem:
Dizia que era órfão e que passou a infância vagando de cidade em cidade, contava que aprendeu a tocar violão com um velho bluesman cego que conheceu na estrada, jurava que tinha trabalhado em circo, ajudando a montar tendas e cuidar de animais e dizia ter fugido de casa aos 10 anos e viajado clandestinamente em trens de carga pelo país.
Nada disso era verdade. Dylan, na realidade, cresceu em uma família de classe média em Hibbing, Minnesota, e teve uma vida comum antes de se mudar para Nova York. Mas ele sabia que um artista não precisa apenas de talento — precisa de uma lenda, e foi assim que ele construiu a dele.
Raul, por sua vez, cresceu em Salvador e se interessou cedo pelo rock, fundando a banda Raulzito e Os Panteras, que tocava covers de Elvis e Little Richard. Assim como Dylan, ele criou uma mitologia própria:
Raul Seixas costumava falar sobre um encontro com John Lennon. Dizia que os dois estiveram juntos em Nova York e que conversaram sobre a Sociedade Alternativa.
Mas não era verdade. O encontro nunca ocorreu.
A Sociedade Alternativa, idealizada por Raul Seixas e Paulo Coelho, compartilha a ideia de um mundo sem fronteiras, baseado em liberdade e amor, como uma resposta crítica à estrutura social e política vigente.
Em 1973, John Lennon e Yoko Ono anunciaram a criação de Nutopia, uma nação sem território, sem fronteiras, sem passaportes. Era uma resposta sarcástica ao processo de deportação que Lennon enfrentava nos Estados Unidos, mas também uma extensão do seu idealismo pacifista, expresso em músicas como Imagine. O lema de Nutopia era baseado na lei cósmica, onde todos eram embaixadores e a constituição era o amor. Hoje, esse conceito foi resgatado digitalmente no site citizenofnutopia.com, permitindo que qualquer um se torne cidadão desse território imaginário e interaja com seus "vizinhos" através de mensagens de afeto e práticas meditativas.
No Brasil, no mesmo ano de 1973, Raul Seixas e Paulo Coelho criavam a Sociedade Alternativa, um movimento inspirado nas ideias libertárias de Aleister Crowley e na contracultura. A proposta era um mundo onde cada um pudesse fazer o que quisesse, sem repressão de governos ou moralismos impostos. Esse ideal foi imortalizado na música Sociedade Alternativa, onde Raul canta:
"Viva! Viva! Viva a sociedade alternativa!"
Assim como Nutopia, a Sociedade Alternativa era uma utopia sem uma localização fixa, mais um estado de espírito do que um país real. No entanto, enquanto Nutopia tinha um tom mais pacifista e baseado no amor cósmico, a Sociedade Alternativa flertava com o misticismo e a rebeldia, adotando o lema de Crowley:
"Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei."
Essa tendência de criar histórias sobre si mesmos mostra um traço fundamental: ambos entenderam que um artista não é apenas sua música, mas também a lenda que o cerca.
Os Discos Mais Icônicos: A Evolução dos Mitos
Bob Dylan: Do Folk à Revolução Elétrica
Bob Dylan começou sua carreira como um cantor folk acústico, mas logo começou a desafiar as expectativas do público.
Alguns dos seus discos mais icônicos refletem essa jornada:
"The Freewheelin’ Bob Dylan" (1963): Contém "Blowin’ in the Wind" e "A Hard Rain’s A-Gonna Fall", estabelecendo Dylan como o grande poeta do protesto social.
"Bringing It All Back Home" (1965): Marca o começo da transição para o rock elétrico, com músicas como "Subterranean Homesick Blues".
"Highway 61 Revisited" (1965): O disco que rompeu de vez com o folk e trouxe um Dylan mais ácido e irônico, com "Like a Rolling Stone" e a já mencionada "Highway 61 Revisited".
"Blonde on Blonde" (1966): Um dos primeiros discos duplos da história, com um som caótico e letras surrealistas.
O mais interessante é que, a cada disco, Dylan mudava tanto de estilo que muitos fãs ficavam confusos ou revoltados — mas ele nunca se importou.
Raul Seixas: Do Rock ao Misticismo
Raul também teve uma carreira marcada por mudanças constantes e álbuns que desafiaram expectativas:
"Krig-ha, Bandolo!" (1973): Seu primeiro grande disco solo, com clássicos como "Ouro de Tolo", "Mosca na Sopa" e "Metamorfose Ambulante". Um manifesto de sua filosofia de vida.
"Gita" (1974): Inspirado no livro Bhagavad Gita, traz Raul assumindo uma persona quase messiânica, com faixas como "Sociedade Alternativa" e "Medo da Chuva".
"Novo Aeon" (1975): Um disco mais filosófico e existencialista, mostrando um Raul mais introspectivo.
"Metrô Linha 743" (1984): Retomando o rock cru e acelerado, com a já mencionada semelhança com Dylan.
Assim como Dylan, Raul usava cada disco para se reinventar, sempre desafiando o público.
Bob Dylan e a Tradição Literária
Dylan era um leitor ávido, e alguns escritores influenciaram diretamente suas letras:
Arthur Rimbaud: O poeta simbolista francês, com sua escrita caótica e onírica, inspirou a fase surrealista de Dylan nos anos 60.
Jack Kerouac: A literatura beat, especialmente On the Road, influenciou o espírito errante de Dylan.
William Blake: A visão mística e rebelde do poeta inglês aparece em várias canções de Dylan, principalmente em The Times They Are a-Changin’.
Raul Seixas e o Ocultismo
Raul era fascinado por literatura filosófica e esotérica, e algumas de suas maiores influências foram:
Friedrich Nietzsche: O conceito de "Super-Homem" e a ideia de criar a própria moral aparecem em músicas como Novo Aeon.
Aldous Huxley: Admirável Mundo Novo influenciou sua visão crítica da sociedade.
Aleister Crowley: O mago ocultista inspirou Raul e Paulo Coelho na criação da Sociedade Alternativa.
Ambos absorveram a literatura e a transformaram em música, criando obras que iam além do entretenimento e se tornavam verdadeiras experiências filosóficas.
Dois Visionários, Dois Mitos
Bob Dylan e Raul Seixas não foram apenas músicos.
Eles foram criadores de mitos, reinventando suas próprias histórias.
Leitores vorazes, transformando literatura em música, desafiando o público, sempre mudando de estilo e conceito.
São rebeldes que rejeitaram rótulos, recusando ser "gurus" de qualquer movimento.
Ambos deixaram um legado que transcende a música, influenciando gerações de fãs e artistas.
"Metrô Linha 743" e "Highway 61 Revisited": O Blues do Caos
Agora, vamos mergulhar profundamente na semelhança entre essas duas faixas.
A Estrutura Musical
Highway 61 Revisited tem uma base de blues acelerado, sustentada por um ritmo hipnótico e pontuada pelo som característico de um apito de polícia, que aparece como um elemento cômico. Depois de cada estrofe a sirene é usada quase como uma vírgula sonora, a punchline da piada mítica criada pelo diálogo surreal.
Metrô Linha 743 segue o mesmo esquema: um boogie frenético, com uma levada repetitiva e um instrumental caótico. Em vez do apito de Dylan, Raul usa efeitos e sintetizadores, reforçando a sensação de desespero urbano.
A escolha do blues não é casual. Esse estilo, originalmente uma forma de expressão dos marginalizados, aqui é usado como um veículo para o absurdo e o colapso social.
A Letra e o Tom de Narração
Ambas as músicas adotam uma narração acelerada, quase falada, onde o cantor despeja palavras em um fluxo de consciência surreal.
Dylan abre Highway 61 Revisited com Deus e Abraão negociando um sacrifício humano, já estabelecendo um tom satírico e bizarro. Ele segue contando histórias de personagens desajustados, transformando a lendária rodovia americana em uma metáfora para a hipocrisia da sociedade.
Raul, em Metrô Linha 743, pinta um retrato de uma cidade apocalíptica, onde personagens vivem à beira do colapso. Ele descreve um mundo sem saída, com elementos de paranoia, violência e caos urbano.
As duas músicas compartilham a ideia de um caminho sem volta.
Em Highway 61, tudo de estranho e sinistro parece acontecer naquela estrada — não há escapatória.
Em Metrô Linha 743, o metrô é um túnel distópico, onde a sociedade está presa em um ciclo de desespero.
Ambas usam metáforas de viagem para falar sobre falta de controle, destino inexorável e caos social.
Dylan e Raul sempre tiveram um lado narrativo e cinematográfico em suas músicas. Nessas duas faixas, eles criam uma sensação de deslocamento e absurdo.
Highway 61 Revisited começa com a icônica frase:
God said to Abraham, "Kill me a son"
(Deus disse a Abraão: "Mate um filho para mim")
Dylan transforma um trecho da Bíblia em uma história surreal, onde diversos personagens aparecem pelo caminho, cada um representando uma faceta do caos da sociedade americana.
Metrô Linha 743 segue a mesma lógica narrativa, colocando o protagonista em uma jornada dentro de um metrô rumo ao desconhecido. Raul descreve uma viagem onde as pessoas estão aprisionadas em um sistema, sem poder escapar.
Highway 61 Revisited faz referência à rodovia U.S. Route 61, que atravessa os EUA de Minnesota (onde Dylan cresceu) até Nova Orleans, sendo uma das rotas do blues. É como se a música fosse uma revisitação da história americana, filtrada pelo olhar de Dylan.
Metrô Linha 743 nos transporta para um ambiente urbano, o sistema de transporte subterrâneo, que simboliza aprisionamento e falta de controle. A escolha do número "743" parece aleatória, mas dá a impressão de algo burocrático e impessoal, como se Raul estivesse ironizando a mecanização da sociedade.
Ambos os títulos remetem a movimento, deslocamento e um destino incerto. A estrada e o metrô são metáforas para o fluxo caótico da vida e para a impossibilidade de fugir do sistema.
Uma característica forte nas duas músicas é a presença de diálogos, que dão um tom teatral e cinematográfico. Esses diálogos criam pequenos esquetes dentro da música, misturando humor e crítica.
A música já começa com uma conversa absurda entre Deus e Abraão:
God said to Abraham, "Kill me a son"
(Deus disse a Abraão: "Mate um filho para mim")
Abe said, "Man, you must be puttin’ me on"
(Abraão disse: "Cara, você só pode estar brincando comigo")
Dylan transforma um episódio bíblico em um bate-papo informal e cômico. Deus surge como um chefe autoritário, exigindo sacrifícios, enquanto Abraão responde como um cara qualquer tentando escapar da encrenca.
E tudo acaba na Highway 61
Já Raul Seixas cria uma cena caótica dentro do metrô, com personagens desesperados e um narrador tentando entender o que está acontecendo.
Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele sabia que tava sendo vigiado
Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?
Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado
Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Dylan aponta a hipocrisia da sociedade americana ao colocar figuras de autoridade (Deus, empresários, policiais) em situações ridículas. Ele mostra que a moralidade e as regras são frequentemente arbitrárias e que a vida é um jogo onde as cartas já estão marcadas.
Deus disse, “Não” Abe disse, “O quê?”/ Deus disse, “Você pode fazer o que quiser, Abe…” O diálogo move a música para frente em solavancos rítmicos desajeitados que refletem a tensão que já existente. …Mas da próxima vez que você me vir chegando… Deus diz a ele …É melhor você correr!
Ao transformar a estrada Highway 61 em um palco de eventos bizarros, Dylan sugere que a América não é o que parece ser — é uma terra de promessas quebradas e realidades distorcidas.
Raul, por sua vez, cria uma metáfora sobre a alienação urbana. O metrô representa a rotina mecânica, a falta de escolhas e o destino pré-determinado.
A crítica social de Raul é mais focada na vida moderna, na burocracia e na opressão do sistema. Assim como Dylan fez com a Highway 61, Raul usa o metrô como um símbolo de um mundo sem saída.
As duas músicas são filmes surreais em forma de canção, usando diálogos teatrais, efeitos sonoros e humor ácido para criar um retrato distorcido da realidade.
Raul Seixas claramente bebeu dessa fonte dylaniana, traduzindo o espírito de Highway 61 Revisited para a realidade brasileira. Se Dylan pegava a cultura americana e a jogava no liquidificador do absurdo, Raul fazia o mesmo misturando o pastiche da cultura americana como o rock e misturando com sua baianidade, Elvis e Luiz Gonzaga.
Se você gosta de música que desafia convenções e cria novos mundos, que tal explorar mais conexões entre grandes artistas? Comente abaixo: quais outras semelhanças você vê entre Raul e Dylan? E não esqueça de se inscrever no canal para mais análises como essa!
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