A casa vazia
A ampulheta imprecisa permanece estática.
A arma apontada para a cabeça, os olhos pesados, as mãos tremulas, o suor profano cintilando no segundo eterno. Nenhum grito, nenhuma saudade, nenhuma suavidade sonora, nenhuma santidade esquecida que pudesse ser avisada. O cano pressionado carimbava um círculo mágico, que aos poucos ia ficando mais evidente, a pele marcada como boi, como bicho em sacrifício, como o próprio tiro antecipado, como alvo premonitório.
A oração atravessava a linha do silêncio embalando em religiosidade a carne prestes a ser abatida.
Lembrou-se do grito mudo. Lembrou-se da noite com a Lua apagada, pássaro mordendo e arrancando a língua do tempo. Lembrou-se da sanidade, que gemeu e se jogou do abismo, pairando no último segundo.
Moveu-se um pouco, sacudiu as últimas lembranças.
O tiro escorregou pela arma, bateu e vibrou como uma pedra saltitando na água, desviou do destino para se alojar no quadro pendurado na parede, um quadro de uma casa à beira de um lago, do outro lado do mundo, aquele dia a morte encontrou a casa vazia.