quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O tempo é uma velha decrépita



A noite era fria, congelante, daquelas que quem não fuma fica brincando de soltar 
fumaça pelo canto da boca, feito vapor.

No posto de gasolina não tinha nenhum frentista, todos escondidos, abrigados, encolhidos, fora de visão.
Comprei duas heinekens, paguei pela janelinha, bebi a primeira quase de imediato e fui caminhando para o bar 
com a segunda long neck na mão, parecia um daqueles velhos robôs dos antigos filmes, camadas de roupas e 
agasalhos e cachecol e touca, os olhos lacrimejando com o vento cortante.

Desci as escadas, em cada degrau havia uma vela acesa tremendo de frio. 

Um instrumento desafinado projetava notas quebradas e desfiguradas pelo ambiente, havia
apenas uma pessoa quase adormecida no balcão e um velho estático segurando um violão.

Pedi um bomberinho pro dono do bar, que sem abrir a boca colocou a mistura no copo e voltou a se sentar, calado. 

O tempo ali não andava como lá fora. 

Parecia que todos os demônios de todas as religiões marcavam encontro ali,
desde a eternidade.

Sentei-me e passei a olhar com um certo desconforto para a figura que arranhava as cordas.

De vez em quando alguém saía do banheiro sem que eu tivesse visto entrar, ninguém conversava, nenhuma palavra. 
As notas cambaleantes espantavam o silêncio como uma prece mal resolvida. 

Pedi outro bombeirinho e mais outro. 

Espremi os olhos, nesse momento toda a atmosfera ficou mais quente e um cheiro forte estacionou no ar. 

Uma névoa pesada preenchia cada minúsculo canto e uma pequena luz, fraca e tremida, se movia até o palco.

Nesse instante ouvi uma voz longíqua, como que saída de um antigo disco de cera, percebi ser Robert Johnson 
cantando Cross Roads blues,
o som parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo e em lugar nenhum.

Não saía dos alto falantes, apenas existia, flutuante. 

Aos poucos vi a figura imponente sentada em uma cadeira de plástico, o negro de aparência fantasmagórica 
dedilhava o violão envolto por uma aura amarelada e ao seu redor todo o peso de séculos desfilavam com gemidos abafados.

Olhei para os lados e todos estavam distraídos. 

A música foi terminando, o acorde final. Silêncio.

Pisquei por um instante e quando abri os olhos tudo voltou ao normal, aquela mesma figura decrépita que antes 
espancava o seu violão desafinado estava novamente sentada enganchando os dedos pelas cordas, as notas tropeçando pelo ar, 
o frio corroendo a alma.

Os demônios voltaram à sanidade por alguns minutos, subi vagarosamente os degraus, todas as velas estavam apagadas, 
ao sair pela porta avistei uma outra escada, essa nunca tinha visto antes, desci lentamente por ela, as velas 
todas se acenderam novamente, continuei descendo até chegar outra vez ao bar, ouvi os guinchos dissonantes 
do violão mais uma vez e os mesmos rostos  sem expressão, tudo acontecia exatamente da mesma maneira, 
até que decidi outra vez subir os degraus pra ir embora, vi as velas apagadas e na saída a mesma escada, o mesmo bar, a mesma música e a mesma noite fria.
O tempo é uma velha decrépita que guarda cabeças de peixe no congelador.

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